Enquanto isso (e esperando que o time mantenha a humildade, afinal não ganhou nada, e o espírito de vencedor, afinal agora é reta final), deixo aqui a terceira parte da história do tetracampeonato brasileiro, ganho em 1987. Nesse texto, o time começa a arrancada que o levaria ao título. As outras partes estão aqui. No negrito, vídeos. Então, boa leitura. Campeonato Brasileiro de 1987 – Parte 03 Após viver um período de intensa turbulência, onde viu seu cargo seriamente ameaçado, Carlinhos finalmente voltava a ter a maioria dos titulares à disposição. Leandro, Bebeto, Edinho (recuperado da fratura no malar provocada pela covarde agressão de Geovani), todos estavam de volta. Apenas Zico ainda estava fora, mas a perspectiva era de breve retorno. Com isso, o Violino pôde montar uma equipe mais robusta, quase dentro de sua concepção, para a primeira partida do returno, o difícil clássico contra o Botafogo. O rival vivia um clima de euforia e esperança. O forte time montado pelo bicheiro Emil Pinheiro (destaque para o goleiro uruguaio Alves, o lateral Josimar, o zagueiro W. Gottardo, os volantes Luisinho e Carlos Alberto e os atacantes Maurício e Berg, este em grande fase) dava sinais de que estava se encontrando. Invicto há três partidas, havia calado o Morumbi, dando um chocolate no São Paulo (2-0), resultado que eliminou os paulistas do primeiro turno. Diante das más atuações recentes do Flamengo, setores da imprensa passaram a apregoar amplo favoritismo ao Botafogo, o que contagiou sua torcida, que compareceu em massa ao Maracanã, chegando a dividir o estádio com a torcida flamenga (o que hoje soa absurdo) e quebrando o recorde de público, até ali, da competição, cerca de 73 mil torcedores. Tudo parecia indicar uma atuação de gala do Botafogo. Mas faltou avisar ao Flamengo. Mordido com o favoritismo botafoguense, o time entrou muito determinado, com faca nos dentes e sangue nos olhos. Com Bebeto no meio, Kita no comando do ataque e Aírton no lugar de Leonardo na lateral (Carlinhos estava preocupado com Maurício, mas depois mudaria de idéia e devolveria a posição a Leonardo), o Flamengo finalmente conseguiu conjugar força ofensiva a uma marcação implacável. O enganoso placar de 1-0 (num gol improvável de cabeça de Jorginho, fechando no primeiro pau para escorar um escanteio) não refletiu o verdadeiro massacre técnico imposto pelo rubro-negro, com direito a três bolas na trave e várias oportunidades cristalinas desperdiçadas, o que aliás era a marca registrada daquela equipe. Restou aos botafoguenses saírem cabisbaixos do estádio, agradecendo o magro placar e os ferimentos leves. Mas logo viria a ducha de água fria, na partida seguinte, também no Maracanã. Jogando um futebol horroroso, preguiçoso e sem imaginação, o time parou na forte retranca montada pelo Grêmio de Luís Felipe Scolari (onde despontavam nomes como Mazarópi, Bonamigo, Cuca e Valdo). Os gaúchos chegaram a abrir o placar, mas o Flamengo, três minutos depois, chegou ao empate com um gol de pênalti (maroto) cobrado por Andrade. Após o frustrante 1-1, a equipe foi ao Mineirão, enfrentar o bicho-papão do campeonato. Edinho, fora, foi substituído por Zé Carlos II. E justamente num lance bobo, uma falha de comunicação entre o zagueiro reserva e seu homônimo goleiro (o famoso “deixa que eu deixo”), o time acabou derrotado por 1-0, gol do meia Renato (que atuava improvisado no comando do ataque). Não adiantou a boa atuação, as chances de gol criadas, o fato de ter encarado o melhor time (até ali) da competição de igual para igual num Mineirão com 50 mil. O time havia perdido, a situação na tabela começava a ficar delicada. Era necessário engrenar. Era preciso um fato novo. Zico. Finalmente a camisa 10 voltava ao seu eterno dono, recuperado de um problema muscular que o alijara de boa parte da competição. O Galinho voltaria contra o Palmeiras do jovem Zetti, de Edu Manga, Tato e Bizu, que começava a despontar como um dos adversários diretos à conquista da vaga (havia desperdiçado oportunidade preciosa, ao perder para o Bahia em pleno Parque Antarctica). Finalmente, Carlinhos tinha à sua disposição todos os titulares. A resposta seria vista no campo. Sábado à tarde, tempo nublado, 31 mil. Apesar do triste confronto entre as torcidas (que trocaram sopapos, fogos e pedradas), o espetáculo visto em campo foi de gala. Após alguma dificuldade na primeira etapa, o Flamengo dominou inteiramente as ações no segundo tempo, Renato Gaúcho se movimentava em todas as partes do campo, levando consigo uma mensagem de terror e pânico aos zagueiros palmeirenses. Contrapondo a explosão de músculos e velocidade de Renato, Zico regia o ímpeto dos garotos com passes desconcertantes. Mas é Leandro quem começa o lance decisivo. Recebe no meio, arranca com a bola dominada, vai perfurando a cidadela verde. Perde o equilíbrio, deixa com Renato, que contraria todas as leis naturais e passa por dentro de três zagueiros, abre uma cratera na força, no talento e na raça. Agora só resta o impotente Zetti, que dá o salto protocolar, apenas para tornar mais belo o foguete que o corisco Renato atira às redes palmeirenses. 14’, Flamengo 1-0. O estádio canta, pula, dança, celebra a vantagem. Mas há mais. Zico inicia uma jogada que para nos pés de Bebeto, que acerta uma bomba no travessão. Na sobra, bola com Zinho, que cisca e deixa com Zico, aberto na esquerda. Um ponta normal driblaria, cruzaria, algo assim. O Galinho dá um passe cerebral, macio, cínico. A bola atravessa toda a defesa e descai sem peso, sem identidade, abandonada na cabeça de Aílton, que fulmina e decreta 2-0, aos 19. Com uma orquestra de 30 mil vozes entoando “Mengôôôô”, o baile continua. Leonardo rouba bola na intermediária, dá a Zico, que com leve meneio entorta Ditinho. O volante Lino vem ao seu socorro, só para levar outro “come” sensacional do Galinho, Ditinho cobre, leva outro drible. É o estado da arte do futebol, puro jogo de bola. A multidão enlouquece, não sabe se aplaude Zico ou continua acompanhando o lance, pois a bola já está com Bebeto, que recua a Andrade. Meu Deus, é muito craque junto! O Tromba ergue o rosto e inclina o corpo. Lá vem... Não dá outra, lançamento sensacional de 40 metros a Renato, que arranca pela esquerda. O zagueiro palmeirense vem cauteloso, preocupado. Renato não tem piedade, enfia-lhe a bola nas canetas, ri-lhe da cara, avança livre em direção à área. Cruza de trivela. O volante Gérson Caçapa consegue chegar antes e mandar o pesadelo a córner. O jogo segue, o Flamengo continua desperdiçando chances com inacreditável benevolência. O miolo de zaga palmeirense bate cabeça, bêbado, trêmulo com o espetáculo. O torcedor do Palmeiras olha prum lado e vê os lançamentos de Andrade. Muda o enquadramento e aparece a classe de Leandro. Mais adiante, a correria e os toques precisos de Bebeto e suas triangulações inteligentes com Jorginho. E sofre, sofre até as entranhas com o futebol amoral, imoral e obsceno de Renato, o senhor absoluto das ações em campo. Os dribles, arrancadas e provocações de Renato reduzem a defesa paulista a nada. E, como se não bastasse, ainda há Zico, no esplendor da maturidade, com uma motivação juvenil, exibindo seu futebol de monarca de uma nação lânguida em reverências ao seu herói. Diante de tanto craque, ao torcedor palmeirense só resta rezar fervorosamente para que aquilo acabe, e buscar no colo da mãe o alívio para a traumática derrota. E os 2-0 seriam mesmo o placar final, apesar da verborrágica quantidade de gols perdidos pelo ataque flamengo. Mas o torcedor saiu satisfeito do estádio, feliz com a goleada (sim, foi 2-0, e daí? há goleadas que não precisam ser traduzidas em gols). E principalmente com a volta do astro maior. Porque sem Zico, o Flamengo era “apenas” um time forte, competitivo. Com o Galinho, voltava a ser um esquadrão. A arrancada ia começar.
Créditos vídeos: http://www.flamuseu.blogspot.com/
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