terça-feira, 21 de julho de 2009

Alfarrábios do Melo


Olá, saudações rubro-negras a todos. Hoje publico a última parte da história do título brasileiro de 1980, o primeiro da saga do penta. Os outros capítulos estão aqui. Há links para as partes em negrito. No final, há um link para um vídeo precioso, uma raridade. Então, boa leitura.


Campeonato Brasileiro de 1980 (Parte final)


Vai começar a decisão do título brasileiro de 1980. O Flamengo, por ter tido a melhor campanha nas semifinais (um critério esquisito) tem a vantagem dos dois empates na final (mas a melhor campanha geral também era flamenga).

Noite de quarta-feira, o Mineirão pega 90 mil. Atmosfera carregada, a torcida é convocada a pressionar, a fustigar o oponente, aliás, inimigo. Para a imprensa mineira, é guerra. Os torcedores flamengos são recebidos com bombas, cassetetes e porrada. É jogo de altíssimo risco.

E o Atlético talvez nem precisasse disso tudo. Possuía uma equipe belíssima, onde despontavam o talento de jogadores como Toninho Cerezo, Luisinho e Éder, além do melhor de todos, o gênio Reinaldo, que conjugava uma incrível habilidade com a capacidade de fazer gols em arranques curtos e toques sutis (isso lembra alguém?). Essa base era completada com o bom goleiro João Leite, o habilidoso (e manhoso) Palhinha e o brucutu Chicão, que o Galo mandara buscar do São Paulo para ensinar a catimba aos mineiros. Era um oponente capaz de rivalizar com o Flamengo.

Vai começar o jogo. O Flamengo sem Zico e Júlio César, ainda se recuperando das contusões sofridas contra o Coritiba. Carpegiani volta. O barulho é infernal. “Rei, Reinaldo é nosso Rei”, grita a torcida atleticana para seu ídolo. Jogar no Mineirão é sempre difícil, a torcida do Galo é apaixonada, empurra. Mas o Flamengo começa consciente, com personalidade, toca a bola, perde gols, exige de João Leite. O jogo é equilibrado, forte, truncado. E começa a ficar violento. O Atlético quer se impor na porrada, o Flamengo responde. Bola no ataque rubro-negro, a zaga corta, Palhinha recebe, faz o lançamento e de passagem acerta um sopapo em Nunes. Na seqüência, Rondinelli enfia-lhe o cotovelo e sai jogando. As entradas maldosas se sucedem, mas há futebol. Júnior e Reinaldo travam um duelo particular. Primeiro, o mineiro aplica-lhe um drible desconcertante, senta-lhe no chão. Mais tarde, Reinaldo tenta dançar na frente de Júnior, que lhe toma a bola e dá um chapéu humilhante, calando o estádio. Mas Júnior acabaria cometendo um erro capital. Tenta sair jogando na frente da área, perde a bola para Palhinha, que serve a Reinaldo, livre. Aí não tem jeito, Atlético 1-0, o Mineirão vai abaixo, “Rei, o Reinaldo é nosso Rei”. São 10’ do segundo tempo. O Galo se anima, acua o Flamengo, põe nas cordas, quer a goleada. Valente, o time carioca resiste, vai no bico, no cacete. As escaramuças continuam diante do impotente Romualdo Arpi Filho. Escanteio pro Galo. Enquanto os times se ajeitam na área, Palhinha acerta violentíssima cotovelada em Rondinelli, que desaba. Está desacordado. Estrebucha. Fraturou o maxilar. A torcida atleticana se atrapalha e grita “Éder, Éder”, confundindo o autor da selvageria. Os jogadores do Flamengo se desesperam, temem pela vida de Rondinelli, que está com os olhos esbugalhados. A covardia inebria os rubro-negros, que se fecham numa parede e o jogo termina mesmo em 1-0. No vestiário, o clima é de apreensão pelo estado de Rondinelli, que acorda e balbucia, a cara quebrada: “cadê aquele moleque, vou pegar, vou quebrar!”, e desmaia de novo. Alguns jogadores choram de raiva, prometem o troco. A decisão saía do âmbito esportivo. Agora era a honra de um grupo de homens que estava em jogo.

Domingo. Sol. Zico de volta. Time completo (Júlio César também retornava), faltando apenas o Deus da Raça Rondinelli. Em seu lugar, Manguito (ai, Jesus!), certeza de drama. O maior título da história do clube à distância de uma vitória simples. Resultado: um público espetacular de 154.355 pagantes, quebrando o recorde da competição. Na arbitragem, o paulista José de Assis Aragão em grande fase, o melhor da competição. Vai começar “a batalha do Maracanã”.

“Meeeeengooooooo”, é o que se ouve, um berro ensurdecedor. Começa o jogo e as escaramuças, Tita voa no joelho de Jorge Valença, “ai, filho da p...”, Éder encosta, Nunes lhe dá um safanão, “sai daqui, isso aqui é Maracanã, te meto porrada”. A torcida do Flamengo retribui a recepção carinhosa do Mineirão e solta morteiros na torcida do Atlético (foi milagre não ter morrido ninguém naquela final). O Galo tenta manter a posse, mas o Flamengo exerce forte bloqueio, marca a saída de bola. Cerezo e Palhinha estão vigiados por Andrade e Carpegiani. O jeito é sair com os zagueiros. Osmar Guarnelli recebe de João Leite, vem conduzindo, atravessa o campo, adianta demais. Marinho toma-lhe a bola e dá a Zico, que lançamento sensacional, pra Nunes, ganhou na corrida, vai marcar, tocou e é gooooooool do Flamengo! Seis minutos, o estádio vai abaixo! O Mengão já está na frente!

Mas o time está inebriado com o gol e se desconcentra. Bola pra Cerezo, daí a Reinaldo. Ele cisca, zanza, protege, acha um espaço e bate pro gol. O desvio em Manguito engana Raul. É o empate, aos 7 minutos... Raul não resiste, esbraveja: “que porra é essa? Cadê a porrada, cadê os homens dessa merda?”

O gol desnorteia o Flamengo. O Atlético vive seu melhor momento no jogo, passa a controlar as ações. Chicão grita: “bota esses merdas na roda”, leva um cacete pra ficar quieto. Mas o time mineiro ameaça, Éder perde chance clara. O Flamengo vai na raça, Zico faz boa jogada, leva um rapa de Chicão, ameaça: “filho da p..., te segura que eu te quebro”, os dois trocam tapas e dedos na cara. O Flamengo chega, cruzamento na área, Marinho cabeceia na trave, a torcida acorda. Aí, começa a catimba. A cada marcação contrária, os mineiros cercam Aragão, discutem, enervam o esquentado árbitro. O nervosismo aumenta. Carpegiani não está bem, erra um passe besta, Éder agradece, mas se precipita e chuta fora. A defesa do Flamengo bate boca e cabeça. É um jogo muito complicado. Lançamento pra Reinaldo livre, impedimento marcado. O atacante reclama, presepa, pega a bola, volta devagar. É catimba pura, em estado bruto e em excesso. Agora Pedrinho lança Palhinha, Júnior senta-lhe a porrada, o meia desaba no chão, fica uns dois minutos gemendo. Pura cera. Agora o Atlético reclama da barreira, parece time argentino.

O final do primeiro tempo se aproxima. Nunes dá por trás de Luisinho, tira o zagueiro da partida, “isso aqui é pra macho”, agora Tita faz uma graça pela direita, Jorge Valença o acerta. Toninho cobra, joga na área, sai do gol João Leite e espalma, Júnior pega a sobra, chuta, bate em Palhinha, de novo Júnior, chutou, bateu em Zico, dominou, emendou e é gooooooooooool do Flamengo! Zico, quase sentado, faz 2-1, aos 44. O Flamengo comemora, a torcida comemora, e o Galo dá a saída. Bola pra Reinaldo, vai empatar, Raul salva! “Que porra é essa, vai comemorar essa porra no c...”, grita Carpegiani. Fim da primeira etapa. Júnior e Éder trocam sopapos.

No intervalo, Coutinho faz uma surpresa. Põe o time em roda, lê uma mensagem de Rondinelli, que está todo remendado em um hospital ali perto. “Vamos pras cabeças, dêem pra mim esse título”, pede no bilhete. Arrepiado, o Flamengo volta voando. Tita toca pra Zico, que passa no meio de dois e é derrubado. Pênalti! Mas Aragão marca fora. Zico cobra, a bola passa perto. Lançamento pra Reinaldo, o jogador mineiro subitamente estaca. Sente a perna, uiva de dor. Não pode sair, pois o time já queimou duas alterações. Vai ficar ali fazendo número. O título se aproxima cada vez mais da Gávea. Ou pelo menos é isso o que parece...

O Flamengo aperta, cria várias chances. O terceiro gol amadurece. Mas o Atlético luta. Palhinha briga com Andrade, dá a Éder, que cruza alto. Reinaldo entra livre. Não é possível, empata o jogo... Sai manquitolando, com o punho pra cima, ri, debocha. O título volta pra Minas Gerais. Toda a zaga bate boca: “tão com pena do cara, porra?”, Zico chega, “boracabá com a palhaçada, dá aqui essa bola, nessa porra mando eu. Vamo pra cima, quero um time de macho agora!”

O Atlético volta a catimbar. O auxiliar erra um impedimento, Reinaldo esbraveja, retarda a reposição do Flamengo, brinca com a bola. É o fim: “sai daqui, te parto a cara, seu moleque. Tá expulso, fora!”. Aragão perde a paciência. Reinaldo desaba, Aragão pede a maca. O treinador Procópio entra em campo, também é expulso. O Galo não quer mais jogo, só ensebar até o fim.

O Flamengo luta, a torcida cresce. Já são 37’. Pedrinho vem com a bola, procura Cerezo, Júnior se antecipa e dá a Andrade, que lança a Nunes. Ele e Silvestre. Nunes cruza, Silvestre corta, volta pra Nunes, que pára. Olha. Pensa. Incorpora a alma de Zizinho, de Leônidas, dos imortais rubro-negros do passado. Dá uma finta seca, corta pra dentro, entra na área. Está sem ângulo. Zico pede. Não, Nunes não vê. Diante dele, agora está somente uma brecha, um filete entre João Leite e a trave. Um pequeno vão, separando o Flamengo da glória. Nunes manda a bomba, arrebenta a rede do Atlético, mete o terceiro, fecha a conta, o jogo, o campeonato, o título. Nunes deixa de ser apenas um goleador, agora é o Artilheiro das Decisões. Ele se ajoelha, não sabe o que fazer, apenas vive a alegria de ser rubro-negro.

O Atlético se perde completamente após o gol. Tita avança, leva uma pancada. Chicão joga a bola na cabeça de Aragão. Rua. O Flamengo agora retém a bola, dá olé. Palhinha encosta em Aragão: “Tá contente, juiz de m...? Você queria o Flamengo, né?”. É expulso. O Galo nitidamente quer melar o jogo, invade o campo, leva o árbitro à loucura. Em 77, o time perdeu o campeonato pelo excesso de inocência. Agora, é traído pelos nervos. E, claro, pelo exímio futebol do Flamengo, que está com três a mais, gasta a bola, não quer mais briga, o jogo vai acabar. Já estamos com mais de cinqüenta minutos. Bola com Tita, rola pra trás pra Andrade, daí a Carpegiani, mais atrás com Manguito, que atrasa... Poooooorrrra Manguito, olha o que tu fez!!! Éder pegou livre, está sozinho, driblou Raul, levou o tranco, vai empatar... Salva Andraaaaade, que vem na cobertura e dá um bico. E acaba o jogo, é campeão, é festa, é Brasil! Manguito chora, vários jogadores choram, a torcida delira, os mineiros ainda querem briga, Zico encosta, “ô amizade, dá licença e vai tomando o rumo do teu banhinho, que aqui em cima o campeão vai fazer a festa agora!”

Não muito distante dali, um homem está solitário, em silêncio. As lágrimas escorrem pela sua face deformada e coberta de fios e arames. Comovido, o Deus da Raça ouve pelo radinho a festa de seus companheiros, os fogos espocando, a folia de uma nação que vara a madrugada e celebra o Brasil a seus pés.

Poucos imaginavam que, para aqueles heróis, o Brasil não seria o bastante.


(texto inspirado em reportagem de Marcelo Rezende, revista Placar)

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