O Flamengo não é um clube de futebol, mas um patrimônio cultural e popular do Brasil. Para entendê-lo, todo rubro-negro digno de nome tem que ser um detetive da memória carioca e brasileira, pois há um mundo de canções, livros, narrativas, lendas e personagens que formataram a nossa paixão. Esta coluna de múltiplos autores servirá para isso. E, para começar, nada melhor do que abrirmos os olhos para Wilson Batista (1913-1968).
A maioria talvez lembre dessa figura como um grande sambista, responsável por uma célebre polêmica com Noel Rosa. Seu samba "Lenço no Pescoço" fazia a apologia do malandro da Lapa, com versos como "lenço no pescoço/ navalha no bolso" ou "eu tenho orgulho/ de ser vadio". Noel respondeu com "Rapaz Folgado", e Batista foi pra cima com "Mocinho da Vila". Essa conversa produziu pérolas como "Palpite Infeliz", onde Noel sacaneava a suposta ignorância de Batista e louvava a cultura do samba no seu famoso bairro de origem. Infelizmente, ainda hoje, alguns insistem em lembrar de Batista apenas por essa bela polêmica. Mas esse genial compositor nascido em Campos fez muito mais.
Em "Samba rubro-negro", Batista, juntamente com Jorge de Castro, cristalizou o típico orgulho flamengo, ao cantar "Flamengo joga amanhã/ eu vou para lá/ vai haver mais um baile no Maracanã/ O Mais Querido/tem Rubens, Dequinha e Pavão/ eu já rezei pra São Jorge/ pro Mengo ser campeão/ pode chover/ pode o sol me queimar/ que eu vou pra ver/ a charanga do Jayme tocar/ Flamengo!/Flamengo!/ tua glória é lutar/ quando o Mengo perde eu não quero almoçar/eu não quero jantar". Ao homenagear três craques que nos deram o segundo tricampeonato, Batista fez um samba atemporal, que evidenciava as qualidades do Flamengo como instituição carioca: o Maracanã como casa e como hábito, a fidelidade, a charanga e, principalmente, a montanha russa emocional tão típica de nosso torcedor. João Nogueira gravou uma das mais conhecidas versões desta música.
Em "O Juiz Apitou", escrita em 1942 com Antônio Almeida, Batista narra uma partida em que o Flamengo perde pro Botafogo: "Eu tiro o domingo para descansar/ mas não descansei/que louco fui eu/ regressei do futebol/todo queimado de sol/ o Flamengo perdeu!/ pro Botafogo/ amanhã vou trabalhar/ meu patrão é vascaíno/ e de mim vai zombar", diz a primeira parte da letra. É um samba de derrota? Sim, mas é um samba de identidade, que pinta sem retoques as agruras de um homem do povo, que se vê diante da muralha de ressentimento da famosa torcida arco-íris. Afinal, o patrão não é vascaíno à toa. Em uma só figura, Batista reuniu o ódio que o homem comum sente diante das figuras que lhe torram a paciência e lhe roubam o prazer da vida. Pobre ou rico, o rubro-negro sabe que está sempre tendo que enfrentar o gozo dos ressentidos.
Num registro mais melancólico, escreveu em 1946 com Geraldo Gomes "Memórias de um torcedor". A letra? "Eu ontem vim da Gávea tão cansado/ com a cabeça inchada/ pois o Flamengo tornou a perder/ confesso que tristeza em mim é mato/ pois lembro dos áureos tempos/ do Amado, Pena, Hélcio e Moderato/ Faço sacrifício/ venho lá de Realengo/ uma vez Flamengo/ sempre Flamengo/ tenho um escudo do rubro de ouro/ não me desfaço por nada/ brigo na arquibancada se alguém me fala em marmelada". Há uma linda gravação de Cristina Buarque.
Batista sabia, bem como todo torcedor rubro-negro, que a derrota é só contingência. O ser Flamengo está em todas as coisas que nos cercam e compõem nossa identidade: um escudo, uma camisa, ou uma simples discussão em que reafirmamos a paixão. E, fundamentalmente, está na memória.
Está em Amado Benigno, goleiro entre 1923 e 1934, últimos dos grandes da era amadora. Está em Penaforte, clássico zagueiro também da era amadora. Em Hélcio de Paiva, que jogou 132 jogos e nos levou aos cariocas de 1925 e 1927. E no grande Moderato, primeiro rubro-negro a jogar uma Copa do Mundo (1930) e um dos maiores ponta-esquerda de nossa história. Para os que não sabem, Moderato jogou a final de 1927 ainda convalescendo de uma delicada cirurgia de apendicite, e teve que usar uma cinta para segurar os pontos dados pelo médico. Uma chuteira mal intencionada poderia tê-lo matado em pleno campo.
Batista sabia de tudo isso. Ao escrever seus sambas, apenas gravou na forma poética verdades que eram conhecidas dos seus contemporâneos. E, a partir de hoje, esperamos que muitos mais saibam. Pois Wilson Batista é um dos maiores inventores do patrimônio Flamengo.
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