Alfarrábios do Melo
Olá, saudações rubro-negras a todos. Essa semana quero saudar o retorno do nosso Imperador Adriano, que chega num momento extremamente propício, pois, além de ídolo e jogador de primeira linha, vem suprir uma assustadora carência da equipe. Mas vamos ver como essa história começou. Boa leitura.
Adriano. Os primórdios da carreira.
2000. O ano parecia trazer boas perspectivas para o Flamengo, campeão da Copa Mercosul. O aporte milionário de dinheiro conseguido com a parceria com uma multinacional de marketing esportivo, a ISL, dava a impressão de que o clube, finalmente, poderia atingir uma estrutura próxima a equipes de primeiro mundo. Muito se especulava sobre como o Flamengo iria gerir o monumental volume de recursos que passaria a ingressar na Gávea.
No entanto, a prioridade inicial era reforçar a equipe, que perdera Romário (dispensado após se envolver em rumoroso incidente com prostitutas em Caxias do Sul-RS) e Caio, devolvido ao Santos apesar de ter caído nas graças da torcida (o Flamengo não quis comprar seu passe, em função do valor considerado alto). O comando técnico também sofrera alterações. Desgastado com o melancólico final da equipe no Brasileiro de 1999 (competição que chegou a liderar até a metade) e abalado com problemas de saúde, Carlinhos foi afastado (segundo muitos, de forma pouco ética) e substituído por Paulo César Carpegiani, o comandante da Era Zico (1981-1983), que desfrutava de prestígio após o excelente trabalho realizado na Seleção Paraguaia e do bom desempenho no São Paulo, onde, apesar da falta de títulos, conseguira montar uma equipe competitiva (semifinalista do Brasileiro-99).
À disposição de Carpegiani, o clube acenava com reforços. Da Itália, chegava o meia-atacante Petkovic, jogador de técnica acima da média e temperamento irascível. O volante Mozart, grande revelação do Coritiba e destaque da temporada anterior, também foi contratado, após transação que até hoje causa polêmica. Para o ataque, o clube trouxe o desengonçado Tuta, que vivia uma fase excepcional no Vitória, onde desandara a fazer gols. Além desses jogadores, o meia-atacante Lúcio estava de volta, retornando de empréstimo ao Santos. Por fim, o atacante Catê, revelado no São Paulo e que estava na Espanha, era uma aposta. Juntando esses reforços aos jogadores remanescentes do time campeão da Mercosul, tudo indicava que o Flamengo montaria uma das principais equipes do país. E a primeira oportunidade para testar o novo time seria o Torneio Rio-São Paulo, logo em janeiro.
Mas o início não foi nada animador. Após derrotar o Fluminense por 1-0, em amistoso que valeu o Troféu São Sebastião, mas poderia ter servido também para coroar a festa das faixas do Flamengo campeão da Copa Mercosul e do Fluminense campeão da Série C, o time começou a disputar o Torneio Rio-São Paulo. E nos dois primeiros jogos, duas derrotas (São Paulo e Botafogo), ambas no Maracanã. Ainda sem os reforços, Carpegiani recorria a alguns nomes das divisões de base, como os volantes Rocha e Alessandro, e “ressuscitava” o meia Iranildo. Mas o time não respondia, apresentava um futebol burocrático e pouco objetivo. O setor mais criticado era justamente o ataque, e alguns muxoxos reclamando da dispensa de Romário já começavam a ser ouvidos.
Nas partidas seguintes, dois empates contra Santos e Botafogo selaram a sorte do time na competição. Carpegiani era muito criticado pela torcida e pela imprensa, pois a equipe jogava um futebol confuso e indefinido taticamente. O treinador era adepto de um esquema com três zagueiros, cultura que ainda encontrava resistência no Brasil. Além disso, tirava da cartola soluções que confundiam os jogadores (mais tarde, alguns atletas do Flamengo revelariam que não entendiam chongas das preleções do “professor”). Por exemplo, contra o São Paulo o volante-lateral Maurinho foi escalado como terceiro zagueiro. Contra o Botafogo (primeiro jogo), o lateral-direito Bruno Carvalho jogou na esquerda, apesar do time contar com o especialista Leonardo Inácio para a posição. No empate contra o Botafogo, Carpegiani escalou um meio-campo com quatro volantes: Leandro Ávila, Rocha, Alessandro e Fábio Baiano. O contraste entre as invenções do treinador e a simplicidade de seu antecessor era evidente e já incomodava.
Assim, com apenas cinco partidas disputadas na temporada e apenas uma vitória num amistoso, a fritura de Carpegiani já era iniciada. Eliminado do Torneio Rio-São Paulo, o Flamengo ainda tinha dois jogos a cumprir. E a partida seguinte não era das mais animadoras. O time enfrentaria o líder São Paulo, no Morumbi.
O São Paulo tinha uma boa equipe, dirigida por Levir Culpi. Os destaques eram os atacantes França e Carlos Miguel, os meias Marcelinho Paraíba e Souza (que jogaria no Flamengo em 2005), o lateral Belletti, o volante Edmilson e o goleiro Rogério Ceni, além do ídolo Raí. Vinha fazendo excelente campanha no torneio e estava invicto. Era o favorito destacado para o jogo contra o combalido Flamengo e seu contestado treinador.
Carpegiani, já com o pescoço a perigo, resolveu colocar uma formação mais cautelosa em campo. Colocou cinco jogadores no meio e apenas Leandro Machado isolado na frente, numa postura de quem nitidamente não desprezaria o empate. O treinador precisava de tempo, e sabia que, se evitasse um vexame, teria um cenário mais favorável a partir do jogo seguinte, já com a estréia de alguns reforços, contra o Santos (que estava em má fase), no Maracanã.
Mas faltou combinar com o adversário. Com dois gols (um deles belíssimo) de Souza, o São Paulo abriu dois gols de vantagem, para festa do pequeno público que foi ao Morumbi. Ainda não eram decorridos 15’ e a goleada parecia iminente.
Sem alternativa, o Flamengo foi pra cima. E conseguiu um gol importantíssimo, logo após o segundo tento sãopaulino, quando Leandro Machado, na base da raça, infiltrou-se no meio da zaga adversária, trombou e caiu. A sobra ficou com Rodrigo Mendes, que tocou entre as pernas de Rogério Ceni. O Flamengo voltava ao jogo. Mas o restante da primeira etapa foi marcado pela inoperância ofensiva da equipe, que não foi capaz de ameaçar a vantagem adversária. Levir Culpi, cauteloso, mandava a equipe administrar, tocar a bola, esperar os espaços que o Flamengo também se negava a oferecer. Assim, não foi surpresa que o primeiro tempo terminasse mesmo com o placar mantido nos 2-1 pro time da casa. Até então, poucos imaginavam o que estava para acontecer.
Precisando evitar mais um resultado negativo, Carpegiani resolveu ousar, sacando Maurinho e entrando com mais um atacante. Trouxe Fábio Baiano pra lateral, abrindo assim o meio. E o atacante que entrava era um corpulento garoto de 18 anos, muito elogiado na base, que seria mais uma aposta para tentar quebrar o marasmo da linha de frente rubro-negra. Seu nome: Adriano.
Não era a estréia do garoto, que havia atuado alguns minutos no empate contra o Botafogo, deixando ótima impressão. Agora ele teria 45 minutos, tempo de sobra para tentar mostrar o que Leandro Machado, Rodrigo Mendes e Reinaldo ainda não haviam conseguido naquela temporada: bom futebol. E nem o torcedor flamengo mais exaltado imaginava o que estava por vir.
Começa o segundo tempo, toque pra lá, toque pra cá, Leandro Ávila rouba uma bola e lança Adriano. O menino, em sua primeira participação, domina, dá um corte pra dentro e fuzila, devastador, no contrapé de Rogério Ceni. O Flamengo empatava, 2-2.
A entrada de Adriano mudou o panorama da partida. Apesar da pouca idade, o moleque ganhava todas as bolas com seu físico privilegiado. Cheio de gás, enlouquecia a defesa do São Paulo com sua movimentação incessante, ocupando os dois lados do campo. E, apesar do porte avantajado, mostrava bom domínio de bola e até arriscava alguns dribles. Era talento em estado bruto, puro. Naquela segunda etapa, estava começando o ano de verdade para o Flamengo.
Sim, porque o time todo começou a crescer, e até mesmo nomes outrora contestados, como Iranildo e Leandro Machado, começaram a encontrar seu futebol. Levir, sempre estudioso, foi surpreendido com a entrada de Adriano, que mal conhecia, e não conseguiu acertar a marcação. O São Paulo saiu pro jogo, tentando reencontrar a vantagem perdida, mas começou a abrir vastos espaços em sua defesa. E o Flamengo, jogando um futebol muito mais confiante e agressivo, não demorou a se aproveitar disso. Iranildo abre pela direita e encontra Leandro Machado, que domina e executa na saída de Rogério Ceni. Era a virada, 3-2. Mas não parou por aí. Rodrigo Mendes faz boa jogada e rola para a chegada de Iranildo. O Chuchu manda uma bomba e faz o quarto gol. O Flamengo, mais leve, começava a abrir uma goleada em pleno Morumbi, 4-2.
Faltava a cereja no bolo. Adriano aperta Rogério Ceni, que se precipita e sai jogando errado. Rodrigo Mendes pega a sobra e dá ao garoto, que serve com açúcar para Leandro Machado, inteiramente livre, rolar para o gol vazio. O Flamengo humilhava o São Paulo em pleno Morumbi: 5-2, que acabou sendo o placar final. Foi a última vez (e uma das únicas em sua história) que o time paulista levou CINCO gols em seu estádio.
Após o vendaval que o garoto Adriano aprontou no Morumbi, Carpegiani finalmente encontrou paz para trabalhar (pelo menos por alguns jogos, até mais uma invenção sua redundar no desastre da Taça Guanabara). Adriano foi mantido na equipe na partida contra o Santos, em que o Flamengo novamente goleou (4-1), despedindo-se de forma honrosa do torneio, em jogo que marcou a estréia de Petkovic e o retorno de Athirson.
Entretanto, Adriano acabaria perdendo o lugar no time para Tuta. Com o excesso de jogadores na frente, o menino foi devolvido à base, voltando a despontar no time principal no segundo semestre, onde participou de vários jogos, mostrando evidente potencial, mas acabou vítima do caos que se tornara o futebol rubro-negro, que nem o bicampeonato estadual e a volta de Carlinhos ao comando (depois Zagallo) foram capazes de contornar, com o desembarque em profusão de jogadores caros e pouco comprometidos com o clube. E Adriano acabaria sendo uma das vítimas da permanente má fase da equipe, recebendo nos ombros a injusta pressão de render o futebol que os medalhões não vinham sendo capazes de mostrar.
Mas a vida dá voltas e o mundo gira. E, no meio de tanto lugar-comum, o Flamengo acaba, como é corriqueiro em sua história recente, promovendo o retorno de mais um garoto da sua base, mais um aspirante a ídolo que saiu prematuramente para brilhar lá fora. Garoto que padeceu, aprendeu, cresceu, venceu, chegou ao topo, caiu e se reergue. O menino tímido, que chorava a cada vaia, agora sorri um sorriso farto, vasto, pleno de triunfo e felicidade.
Sorriso de vencedor.
De Imperador.
Links no youtube:
São Paulo 2-5 Flamengo, 2000
Adriano no Flamengo. Gols e lances (vídeo longo)
|