Alfarrábios do Melo
Olá, saudações rubro-negras a todos,Como essa é uma semana de Fla-Flu decisivo, é com prazer que trago a história de uma das mais incríveis conquistas do Flamengo, o Carioca de 1963, obtida após um jogo antológico. Eu já presenciei vários títulos do Flamengo, mas se pudesse voltar no tempo, gostaria de ter visto esse campeonato, que quem viu conta que foi a cara do Flamengo, mais do que nunca.
Então, boa leitura.
O Campeonato Carioca de 1963 e o Fla-Flu dos 200 mil
1963. Oito longos anos se passaram desde que o Flamengo levantara sua última taça de campeão estadual, justamente o tricampeonato em 1955. Desde então, o clube até montara bons times (como o campeão do Torneio Rio-SP de 1961), mas sempre faltava alguma coisa, o título escapava por algum detalhe. A verdade é que, sem dinheiro, não havia espaço para contratações caras, e os elencos eram sempre inferiores aos dos rivais. Mas a “seca” de títulos já incomodava.
E o cenário para o Carioca daquele ano não era dos mais promissores. O Botafogo era o atual bicampeão e partia com tudo para o tri. Nem a perda da Taça Brasil daquele ano, após derrota (0-5) para o Santos parecia abalar o time de General Severiano, que tinha estrelas como Garrincha, Nilton Santos, Zagalo, Manga e Amarildo. O Fluminense, terceiro lugar no Rio-SP, parecia ser o principal rival. Tinha uma equipe arrumadinha, muito bem treinada por Fleitas Solich (herói do tri do Flamengo em 55), na qual se destacavam o goleiro Castilho, os defensores Altair e Procópio e o perigoso atacante Escurinho, além do garoto Carlos Alberto Torres. Mesmo o Bangu, patrocinado por Euzébio e Castor de Andrade, montara um time de respeito, onde sobressaíam Ubirajara, Zózimo (titular da seleção campeã mundial no ano anterior), o velocíssimo Paulo Borges e o goleador Bianchini. No comando, o respeitado treinador Tim.
E o Flamengo? O time não vinha fazendo uma boa temporada, terminara o Rio-SP num pífio 7º lugar e acumulara derrotas em recente excursão à Europa. O grande ídolo da equipe, Dida, já começava a vislumbrar o final da carreira. Os principais nomes eram os meias Carlinhos (o Violino, dono de um toque de bola refinado), e Nelsinho, eterno parceiro. Outro nome de destaque era o lateral-esquerdo Paulo Henrique, que anos mais tarde serviria a Seleção Brasileira na Copa de 1966. No ataque, os velozes ponteiros Espanhol e Osvaldo Ponte-Aérea abasteciam o centroavante trombador Aírton Beleza, que tinha enorme facilidade para acumular gols e confusões. Do Atlético-MG, o clube havia trazido o jovem e promissor goleiro Marcial. Mas o craque do time era o meia-armador Gerson, o Canhotinha de Ouro, que tinha grande facilidade de chegar ao ataque e marcava muitos gols. Contudo, Gerson não tinha um bom relacionamento com o treinador Flávio Costa, numa rusga que vinha desde a decisão do Carioca de 1962.
Começa o campeonato, e para surpresa de muitos o Flamengo sai na frente, acumulando seis vitórias seguidas, entre elas um categórico 3-1 no Botafogo (que aliás, com seus jogadores estafados com seguidas excursões, é a decepção da competição). Junto com o Flamengo, o Bangu também emplaca várias vitórias e assume a liderança. O Fluminense vai correndo por fora. O Mengão, que começara bem, inicia uma série de tropeços e acaba o primeiro turno em terceiro lugar, a dois pontos do Bangu. O campeonato daquele ano, com 13 times, era disputado em pontos corridos, como o é o Brasileiro de hoje. Lembrando que a vitória valia 2 pontos.
Segue a competição, e o Flamengo continua deixando escapar pontos importantes. Empata com Botafogo e Madureira e já vê o Bangu abrir 4 pontos de vantagem (o Fluminense está 2 pontos na frente do Fla). Pior, perde Dida, negociado para a Portuguesa. Dida já não era o craque dos anos 50, mas ainda era uma referência importante para a equipe. Mas o clube, em dificuldades financeiras, viu na proposta da Lusa a possibilidade de fazer algum dinheiro. Porém, o golpe maior é a saída de Gerson, negociado com o Botafogo a pedido de Flávio Costa, seu desafeto. Sem seus dois principais jogadores, ignorado pela mídia (encantada com o Bangu de Tim), e a uma distância aparentemente inalcançável dos líderes, o Flamengo via a aparente chegada de mais um ano na fila.
Mas aí o que parecia inacreditável começa a acontecer. O Flamengo inicia uma arrancada espetacular, marcada por vitórias suadas, sofridas, dramáticas (1-0 Bonsucesso, 2-0 América, 2-1 São Cristóvão, 2-1 Olaria). Vem o clássico contra o Vasco. 15 minutos, e o rival já abre 2-0. A derrota significaria o fim do sonho. Termina o primeiro tempo, o time escapa de ser goleado. Vem a segunda etapa, o Flamengo voa em campo e empata. O Vasco faz mais um. Mas, na marra e empurrado pela torcida, o Flamengo vira para 4-3, num dos mais sensacionais jogos da história contra o bacalhau. O time está na briga, até porque Bangu e Fluminense começam a tropeçar.
O Fluminense perde pro Botafogo (0-3) e empata com o América (0-0). O Flamengo agora está um ponto à frente dos tricolores. O Bangu abre dois gols, perde inúmeras chances, mas cede o empate para o América (2-2) e já começa a ver o Flamengo no retrovisor.
Numa atuação fantástica, talvez a melhor da equipe no campeonato, o Flamengo mete 3-1 no favorito Bangu, e agora só está a um ponto do time de Moça Bonita. Mas ainda resta o jogo entre Fluminense e Bangu, e num jogo considerado “estranho” pela crônica, os tricolores vencem por 3-1, eliminando os banguenses do campeonato. Falta uma rodada, a decisão será entre Flamengo e Fluminense. O Flamengo é líder, e joga por um empate.
Foi uma semana que parou a cidade. Como relata uma crônica da época, “um sujeito da minha rua morreu anteontem. No velório dava pra ver a cara amarrada do defunto, pois iria perder o jogão.” Não se falava em outra coisa nos jornais e nas rádios, o nível de mobilização para o Fla-Flu decisivo foi algo absurdo. A torcida do Flamengo, ansiosa por um título que não via há oito anos, estava inquieta, apreensiva e eufórica, como só um rubro-negro sabe ser.
Chega o dia do jogo. 177.656 pagantes estabelecem o recorde mundial de público numa partida entre clubes, marca que provavelmente jamais será batida. Mais: juntando-se o público não-pagante divulgado, tem-se o total oficial de 194.603 pessoas presentes no estádio. Uma multidão que na realidade de hoje parece algo inverossímil. Vinte por cento da cidade estavam no Maracanã naquele dia.
A partida começa cautelosa. Fleitas Solich conhecia a índole rubro-negra, imaginava que o Flamengo, uma hora ou outra, iria partir ao ataque, e assim poderia explorar os contragolpes, principal arma do Fluminense. Mas Flávio Costa já havia perdido uma Copa do Mundo em situação semelhante, não iria cometer o mesmo erro novamente. Assim, colocou o Flamengo atrás, prendendo os ponteiros e os meias, ignorando os gritos de sua torcida e fazendo o torcedor rubro-negro sofrer até o apito final.
O Fluminense tenta tomar a iniciativa, mas a cada ataque mais ousado o Flamengo responde com Espanhol, que está bem no jogo. Os tricolores, assustados, preferem manter um jogo mais paciente, o rubro-negro não cai na armadilha, permanece atrás. E assim termina o primeiro tempo, num tenso 0-0. Ninguém sai do lugar. Uma atmosfera de nervosismo permeia o estádio, que parece um rastilho de pólvora perto de explodir.
Começa a segunda etapa, o Fluminense sai mais. Mas Flávio Costa prefere manter o Flamengo mais cauteloso, tenta embolar o meio-campo. Aos poucos, o domínio tricolor começa a se traduzir em oportunidades de gol. Evaldo arranca pela direita, recebe livre e cruza pra trás, mas na hora do chute Escurinho é travado por Luís Carlos e a bola sai. Logo depois, o ponta Edinho passa por Paulo Henrique, cruza e Escurinho emenda, mas a bola explode na trave. O Fluminense está melhor e parece mais perto do gol. A torcida rubro-negra sofre, rói os dedos de ansiedade. A figura do goleiro Marcial já começa a se destacar com defesas seguras. Os zagueiros Ananias e Luís Carlos dão a alma em campo, seguram o ataque adversário no grito, na porrada, do jeito que dá. Mas a pressão é enorme. Tabelinha tricolor na área do Flamengo, a bola repica para Edinho, que fuzila pra fora, à esquerda. A pressão não tem fim, o time do Flamengo parece sem pernas. Agora faltam 10 minutos. Fleitas Solich manda o time ir todo à frente, agora o Flamengo vai ser só defesa. O clima é insuportável, o relógio parece ter parado para o torcedor rubro-negro. Marcial começa a fazer uma defesa atrás da outra. Cruzamentos, chutes de longe, tiros à queima-roupa, o goleiro flamengo pega tudo. Os jogadores do Fluminense começam a mostrar desânimo com a atuação de Marcial. Faltam poucos minutos, o tempo vai passando lentamente, a raça dos 22 jogadores é inebriante. Nervosa, a torcida tenta incentivar, mas ninguém tira os olhos da partida. O jogo vai acabar. Mas de repente, uma bola vai pro tricolor Evaldo, que tromba com Marcial, a sobra cai limpinha nos pés de Escurinho, pedindo “me chuta”. O gol está aberto. O Fluminense vai abrir o placar. Marcial consegue se levantar e se põe na frente de Escurinho, mas o atacante é mais rápido e toca por cobertura. O lance de gol é tão claro que a torcida tricolor chega a comemorar, transida de tensão. Mas o inacreditável acontece: o iluminado Marcial, como um gato, dá um pulo pra trás e consegue alcançar a bola. Cai no chão, e se levanta erguendo a pelota, como um troféu. As duas torcidas irrompem num “ooohhhh”. Acabava de se consumar uma das mais espetaculares defesas da história do Maracanã.
Depois desse lance, o Fluminense entregou os pontos de vez, resignado com a atuação sobrenatural do goleiro do Flamengo. Não demorou, o árbitro trilou o apito, fazendo o Rio de Janeiro explodir em festa. O Flamengo era, após oito anos, novamente o dono da cidade. Uma conquista tipicamente flamenga, com todos os seus elementos característicos: time pouco cotado, arrancada no final, jogos ganhos na raça e na alma. Poucas vezes na vasta história de campeonatos ganhos pelo clube um título tenha traduzido tão fielmente o que era “Ser Flamengo”.
Link no youtube: Flamengo 0-0 Fluminense (partida decisiva)
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