terça-feira, 8 de maio de 2012
Alfarrábios do Melo
Saudações
flamengas a todos. Com um misto de inquietação, indignação e
impotência, assistimos à “preparação” da equipe para o
Campeonato Brasileiro, enquanto a diretoria literalmente bate cabeça
na busca de reforços, sem observar o mais remoto critério. E que
história é essa de rebaixar um dos nossos mais promissores garotos
em detrimento de um desconhecido? Como diz o Zico, quero crer que se
trata apenas de incompetência.
O
nível de mediocridade dessa gestão se torna ainda mais surreal
quando a contrapomos à grandeza da instituição. A história que
conto abaixo dá uma pequena dimensão do que é o Flamengo, do que
significa o Flamengo, do que é capaz de ser o Flamengo.
Em
algumas linhas, um pouco do verdadeiro Flamengo. Não do clube de
bairro de patricinha.
Boa
leitura
O
Massacre dos Globetrotters
1981,
junho. Recostado em uma mureta, o holandês Ruud Krol repousa,
buscando encontrar fôlego e concatenar ideias. Procura, acima de
tudo, entender o que acabou de presenciar nos últimos e invulgares
noventa minutos, que se consubstanciaram numa sequência de
acontecimentos antes inimagináveis, beirando o surreal, o irônico
na sua mais refinada acepção. Sim, porque há um punhado de anos
ele, o próprio Krol, era parte de um grupo de artistas que
encantava, que girava, que rodopiava o futebol total arrepiando e
atordoando espectadores e adversários. Um carrossel... Emoções que
novamente afloram, o mesmo deslumbramento, a mesma histeria, a mesma
sensação de desorientação. Mas dessa vez Krol viveu o outro lado.
E ainda tenta crer, entender, tateia o chão pedregoso, perde-se num
olhar desamparado. Busca respostas.
O
Napoli de Ruud Krol não é o Carrossel Holandês, mas conseguiu
formar uma das equipes mais fortes da Itália. Terceiro lugar na Liga
Italiana, destaca-se justamente pelo seu fortíssimo sistema
defensivo, em que o holandês é peça chave. Uma equipe jovem e
qualificada, que almeja voos mais altos nas competições européias
da temporada, e que para isso conta com sua inflamada torcida, a mais
apaixonada da Itália, que faz do Estádio San Paolo um verdadeiro
inferno.
Brotam
do verão europeu miríades de torneios internacionais, onde as mais
prestigiadas equipes da Europa e da América do Sul duelam medindo
forças, intercambiando dólares e talentos. Nesse contexto, a
diretoria napolitana consegue trazer o Flamengo de Zico, Campeão
Brasileiro de 1980 e vencedor de competições como o Ramón de
Carranza. O anúncio da presença da equipe brasileira anima a
cidade, que desde já esgota os ingressos para os dois dias de um
evento que já nasce prestigiado.
Krol
se recorda que seu time começa bem, goleia com autoridade o campeão
irlandês (4-0), adversário escolhido a dedo para sparring.
Naturalmente, o time da casa não pode ficar fora da final. A
informação de que o Flamengo goleara o Avellino (5-1) havia sido
recebida com naturalidade, o Avellino (décimo colocado no Italiano)
possuía força bastante relativa. Talvez tenha sido esse o erro.
Talvez um pouco mais de atenção, um pouco menos de amor-próprio...
Talvez o desastre pudesse ser evitado. Mas agora repousam apenas
conjecturas, que se esfumam nas suas tumultuadas reflexões.
O
Flamengo vive um momento turbulento. A saída do treinador Cláudio
Coutinho, mentor e gestor de um grupo extremamente talentoso, quebrou
um equilíbrio, aflorou vaidades, fez brotarem divergências. Dino
Sani não consegue encontrar uma solução que encaixe tantos
jogadores de qualidade em um time competitivo. Não acha lugar
simultâneo para Andrade, Adílio, Tita, Vítor, Baroninho, Nunes,
fora os reservas Chiquinho, Lico, Peu. Da equipe, ainda em crise pela
eliminação prematura do Brasileiro, ainda emanam notícias
tumultuadas, como a recusa de Tita e Adílio em atuarem deslocados
nas pontas, os problemas de Dino Sani com alguns jogadores e a
polêmica, arrastada e prolongada novela da renovação de contrato
de Zico, enfim resolvida dias antes da viagem. Animicamente, o
rubro-negro não parece assustar.
As
lembranças de Krol agora apontam para a entrevista antes do jogo,
“não, não tememos ninguém”, “saberemos parar o jogo deles,
nossa defesa é forte o suficiente”. Sim, a sólida defesa do
Napoli, expoente da conceituada escola italiana, já havia sido
testada e aprovada contra alguns dos melhores ataques. Krol anda
jogando o fino, recebeu prêmio de melhor líbero da Europa. A
confiança era total, o Napoli pensava na vitória e no título, para
celebrar junto à sua animada e festeira torcida.
A
belíssima Baía de Napoli é banhada por um sol reluzente e
brilhante, que cintila na relva do majestoso Estádio San Paolo.
Oitenta mil tifosi abarrotam as dependências do estádio, berrando
cânticos apaixonados, chacoalhando faixas e trapos. “Na-po-li,
Na-po-li!” O clima é de final de campeonato, como bem percebem os
flamengos recebidos com vaias caudalosas, quase hostis, ao entrar em
campo. Alguns dão de ombros, outros se arrepiam, “parece o
Maracanã...”
Krol
agora se levanta, resolve ir pra casa. Parece mais calmo, resignado.
Afinal, são brasileiros, são mesmo os melhores. Caminha, e as
lembranças da surra já não lhe parecem traumáticas. Entra no
carro, e começa a viajar prazerosamente a cada lance que lhe invade
a memória. Sabe que dificilmente viverá algo parecido.
O
Napoli começa pressionando, a torcida incendeia o time, mas o
Flamengo está indiferente, toca a bola, gasta o tempo, glacial. E
imprime uma movimentação indecifrável, ataca com quatro, cinco e
se defende com outros tantos. Os napolitanos seguem torcendo,
berrando, vaiando, mas arrefecem quando as bolas começam a entrar.
Zico, Zico, depois Nunes. No primeiro tempo, o Flamengo abre 3-0,
arromba, esgarça uma das melhores defesas da Europa. Com absurda
facilidade, vai jogando uma pelada em um dos mais respeitados templos
italianos. Profana a mais fanática das torcidas, abre a geladeira,
toma uma cerveja, liga a tevê, tira a camisa e deita no sofá. O
Flamengo joga inteiramente à vontade, Zico já parece não tocar o
chão com os pés. Flutua, paira sobre os demais 21 mortais. E a
torcida desiste.
Sim,
esse é o momento mais impressionante que Krol talvez tenha vivido em
toda a sua carreira. A torcida napolitana, simplesmente a mais fiel,
a mais fanática, a mais barulhenta, a mais temida, a mais apaixonada
da Itália simplesmente desiste de apoiar o time e passa a aplaudir o
Flamengo e seus astros, que giram como globetrotters da bola. Cada
passe de Zico, cada drible de Adílio, cada arrancada de Nunes são
saudados entusiasticamente com palmas e gritos. E os napolitanos são
exigentes. Clamam por mais gols. Do Flamengo. Contra seu time.
A
RAI interrompe a transmissão de um filme e passa a acompanhar a
partida de Napoli, anunciando um evento jornalístico, “está
acontecendo algo inacreditável no San Paolo, um time brasileiro está
fazendo história, conheçam o melhor futebol do mundo”. A essa
altura, o jogo já está 3-0.
Krol
se lembra da absoluta incapacidade de seu time de sequer entender a
dinâmica flamenga de jogo. Cada ataque um tormento, os brasileiros
sempre se deslocando, sempre aparecendo livres, sempre desmontando
seu time com um meneio de corpo, um drible. E aquele ET, aquele
monstro, aquele gênio, aquele Zico regendo uma absoluta orquestra da
bola. “Mais, mais”, gritavam os italianos. E Zico tabelando com
meio time num olé interminável, e lançando a Nunes, e recebendo na
frente, e metendo o quarto gol, e explodindo o estádio, a cidade. E
o time tocando bola e se poupando, tem jogo pelo Carioca na quinta, e
toureando um adversário entregue e exangue, e Adílio riscando pela
zaga e fechando a conta, FLAMENGO 5-0 NAPOLI, e a absurda reação de
uma torcida refestelada de um banquete, um manjar. Felizes e plenos,
os napolitanos saem do teatro embasbacados com a ópera. Alguns
cogitam pagar novamente o ingresso.
Krol
chega em casa, surpreende-se com a presença de um repórter, que lhe
faz algumas perguntas sobre a contundente e indiscutível exibição
do Flamengo. Tranquilo, responde com calma às questões, reconhece a
superioridade brasileira, que julga escandalosa. Mas dá uma
declaração forte, e que ficará por muito tempo nas mentes
italianas, “não sei porque falam tanto em Maradona. Já atuei
contra ele, e posso afirmar categoricamente que Zico está em um
patamar muito superior. É outro nível de jogador. É por Zico que
se deveriam gastar mais linhas de jornal. Porque Maradona precisa
evoluir muito para chegar próximo ao nível de Zico.”
A
Itália começa a se apaixonar por Zico. Uma paixão que vai virar
ideia fixa.
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