Junior, 1000 jogos - Texto 18 - Eu vi o Junior - * Marcele Fernandes
"Primeiro, termina uma faculdade. Depois, faz outra". O Junior parecia distraído, mas de repente parou, me olhou e despejou em tom sério a frase. Pra mim, parecia mais uma rajada de metralhadora do que de palavras. Como é que ele sabia que eu estava pensando em abandonar uma faculdade, em prol de outra, que eu nem tinha começado? O que ele fazia num balcão da padaria da esquina da minha casa, em Quintino, lugar onde eu não morava há um par de anos? Aliás, pensando bem, o que eu mesma estava fazendo ali?
Antes de responder a qualquer uma dessas perguntas, acordei. E antes que vocês me chamem de lunática, eu confirmo: sou lunática. Pelo menos, sei que as pessoas que me acompanham na Lua não são poucas. E em minha defesa, cito a frase do escritor argentino Ernesto Sábato: "De um sonho pode-se dizer tudo, menos que é mentira". Sonhei com o Junior e o conselho que ele me deu - ainda que meio óbvio - enquanto tomava café com leite e comia pão com manteiga, valeu como se tivesse acontecido no meio da rua, valeu como se eu conhecesse ele há anos.
E quem disse que eu não o conheço há anos? O conheço desde que me entendo por gente, desde que sou rubro-negra. Nasci um ano antes do Flamengo se tornar campeão mundial. No ano do primeiro campeonato brasileiro. O Zico já não era há muito meu vizinho de bairro. O gol milagroso de Rondinelli na final contra o Vasco já tinha feito aniversário. Dois, aliás. E - claro! - o Junior já jogava no Flamengo. As histórias do time, as histórias de Junior permearam a minha infância, entraram em meus sonhos como se fossem lendas, lendas que quase sempre aconteciam em um lugar onde eu não podia ir: o Maracanã. Durante a infância só o visitei uma vez, em 1986, para ver um Flamengo e Vasco que terminou em zero a zero. Depois, nunca mais, só adulta. Não adiantavam os pedidos, as súplicas: Maracanã, estádio de futebol, só pela tevê. E olhe lá.
Ainda assim, o Flamengo não saía da minha cabeça. E não saiu mais, mérito do meu avô, que me alfabetizou na cartilha do Mais Querido - graças a Deus. E foi assim que passei boa parte da infância, da infância que me lembro, e não daquela em que eu roubava as lembranças alheias: adorando Junior. Não que eu não adorasse os outros, não que eu não adorasse o Zico. Mas Junior era diferente. Junior estava ali, eu podia me lembrar realmente dele jogando, dos dribles, dos gols. E podia achar graça das fotos e dos vídeos em que o via ainda com o "Capacete", num tempo glorioso para o Flamengo, num tempo que eu não podia recordar. Mas também podia ficar feliz por ter aquele Junior, o de cabelo e bigode grisalho, aquele Junior que era, na verdade, o único que eu conhecia, jogando pelo meu time. Um dos grandes, um dos que eu já tinha escutado tantas histórias, um que eu vi - ainda que de casa, ainda que na reprise pela tevê - deixar o Renato Gaúcho desorientado em 1992.
Deve ser por isso que, mesmo adulta, sonho com ele me dando conselhos. E também é isso que explica a minha súbita palidez, a falta de voz, as mãos tremendo nas vezes que realmente estive próxima do ídolo. Na primeira, o avistei na rua onde morava, em Copacabana. E minha reação imediata foi murmurar baixinho, sem parar: "Eu vi o Junior!", até não agüentar mais de repetir sozinha a mesma ladainha e ligar para o meu namorado, só para ter o prazer de contar para alguém: "Eu vi o Junior!", e ele rir do outro lado, logo após perguntar se eu falei com o jogador e ouvir como resposta um "como se eu fosse capaz disso, meu Deus - falar com o Junior". Os encontros assim - eu encontrando Junior, sempre de longe na rua, atônita - se repetiram. E eu só soube depois que ele morava por ali, que era meu vizinho. O outro encontro foi em uma fila para pegar um autógrafo do Zico, no lançamento de um livro sobre a sua vida. Junior passa, eu fico pálida, muda, o namorado começa a rir e - pecado! - chama: "Junior, por favor!". E Junior pára, conversa, autografa (o Zico autografou logo ao lado, para minha alegria) e eu fico atônita, sem fazer nada - completamente lunática, como já escrevi lá em cima.
Acho que não preciso dizer mais nada sobre o que o Junior representa pra mim. Está tudo aí, nessas linhas. Linhas que eu nunca teria coragem de falar em voz alta, mas que tenho coragem de escrever. Como seria a minha infância se não existisse Junior no Flamengo? Não sei. E é por isso, é por ter convivido comigo na infância, por ter me dado conselhos em sonho, por ter me dado alegrias e alimentado as minhas lendas, é por tudo isso que eu te agradeço, Junior. Muito obrigada pelos mil jogos pelo Flamengo.
* Marcele Fernandes, carioca, 24, é estudante de Jornalismo e Cinema na Universidade Federal Fluminense
sexta-feira, 22 de outubro de 2004
Marcadores:
Administração_do_Blog
Assinar:
Comment Feed (RSS)
Flamengo Net
Comentários
|